A linguagem é ferramenta de construção de mundo. Assim como cada povo tem seu mito de criação, diferentes entidades tem seus estilos narrativos, que descrevem, propõem –– e materializam –– realidades. Não se trata necessariamente de inventar palavras, mas de usá-las de maneira específica, de modo que para compreender seus sentidos é preciso observar o contexto cuidadosamente, pois a definição estrita, em determinadas circunstâncias, não revela os significados sendo utilizados. O universo imobiliário faz amplo uso de um glossário próprio, desde os textos que anunciam apartamentos “aconchegantes” (pequenos), os hotéis que oferecem quartos “superiores” (a categoria mais básica), até os empreendimentos que anunciam “revitalização” (atrair presença de grupos de pessoas com renda acima de 3 salários mínimos).
Aqui, o chamado “duplifalar” ou “duplifala”, “duplilinguagem”, é uma ferramenta construtiva e interpretativa. É um tipo de idioma que propositalmente disfarça, distorce ou até mesmo inverte o significado das palavras, podendo tomar a forma de eufemismos, ambiguidades, exageros ou contradições. Assim, “downsizing” e “reengenharia”, oriundos do jargão corporativo, significam “demissões em massa”; “democracia” e “liberdade”, no jargão político, por vezes significam “autoritarismo”, “autoridade para se impôr sobre os direitos dos demais”. “Duplifalar” não é um fenômeno novo, e requer atenção interpretativa constante para identificar e decifrar o que está sendo dito e de que forma. O passo seguinte é se apropriar dessa ferramenta para oferecer –– e realizar –– construções outras. Para criar outros mundos, que façam frente ao urbanismo que não tem justiça social como eixo fundamental, talvez seja necessário desenvolver uma maneira de “duplifalar”, ser intencionalmente ambíguo para atrair tudo aquilo que é necessário para fazer cidade em grande escala (apoio político, aprovação popular, capital). Se apropriar da “duplilinguagem” para construir contra-especulações, ou especulações cujas bases fictícias sejam alternativas às ficções que atualmente conseguem criar realidade.