Algumas cidades da Amazônia, como Óbidos, Parintins, Belém, alimentaram uma crença em comum de que foram construídas em cima da Boiúna, uma gigante-Cobra-grande que dorme profundamente e que o seu acordar levaria à destruição destes municípios.
Desde tempos imemoriais, os povos originários amazônicos cultivam um apavorante medo do mito da Cobra-Grande, “um ser frio e devastador, possuidor de um corpo absurdamente brilhante capaz de refletir o luar”[1]. “Seus olhos são capazes de irradiar uma luz poderosa a qual atrai os pescadores que se aproximam pensando se tratar de um barco grande”[2]. A imensa Cobra-grande pode se transformar nas mais disparatadas figuras: navios, vapores, canoas… cujo propósito é enganar e alimentar-se de pessoas e animais, além de destruir embarcações. Tal é o rebojo e as cachoeiras que faz, quando atravessa o rio, que o ruído produzido recorda o efeito da hélice de um vapor. Os olhos, quando fora d’água, assemelham-se a duas grandes tochas, a desorientar aqueles que navegam. Ao ficar velha, a cobra vem para a terra. Quando fora d’água, como é muito grande e desajeitada, para conseguir alimento, ela conta com a ajuda da centopeia de 5 metros. “Sua lenda faz parte do ciclo mítico de ‘como surgiu a noite’, segundo a qual a Cobra Grande casa a filha e manda-lhe a noite presa dentro de um caroço de tucumã.”[3] Mas os portadores, ansiosos e curiosos, abrem o caroço, libertam a noite e por isso são punidos.
Em uma outra versão da lenda, uma indígena, grávida de Boiúna (Cobra-grande, Sucuri), deu à luz duas crianças-cobras gêmeas: a menina chamada Maria e um menino, que recebeu o nome de Honorato (ou Nonato). Para ficar livre dos filhos, a mãe jogou-os no rio, onde sobreviveram como cobras gigantes. Honorato, tranquilo, não fazia mal a ninguém, mas sua irmã, perversa, causava sérios prejuízos aos outros animais e às pessoas. Eram tantas as maldades praticadas por ela que Honorato acabou por matá-la. Em algumas noites de luar, Honorato perdia seu encanto e adquiria a forma humana: transformava-se em um belo e elegante rapaz, deixando as águas para levar uma vida normal na terra. Para que se quebrasse definitivamente o encanto de Honorato, era preciso que alguém tivesse muita coragem, para derramar leite na boca da enorme cobra e fazer um ferimento em sua cabeça até sair sangue. Ninguém tinha coragem de enfrentar o enorme monstro. Até que um dia um soldado de Cametá (município do Pará) conseguiu libertar Honorato do terrível-encanto, deixando de ser cobra d’água e vivendo na terra com sua família.
Para o povo oiampi, do extremo norte do Brasil, a lenda ganha ainda outra versão que liga as origens da Boiúna e do Rio Oiapoque, começando em num tempo muito antigo, quando a fome e a doença estavam afligindo a aldeia dos oiampi. Tarumã, uma bela indígena, estava grávida e decidiu procurar um lugar livre da moléstia e da penúria para criar seu filho. Com a barriga pesada, a pequena começou sua peregrinação solitária pela mata. Passados alguns dias, sentiu que não teria mais forças para seguir. – Ó, Tupã, não posso mais dar um passo e morrerei com meu filho no ventre! – clamou ela, sozinha e com fome, no meio da mata. Tupã, complacente, transformou-a numa gigantesca cobra. Tarumã ganhou forças para seguir adiante, levando sempre o filho no ventre. Até que, um dia, encontrou um lugar agradável, onde havia água e terra boa para plantar. Aqui haveremos todos de viver! – disse ela, pensando em retornar às pressas para avisar a gente da sua aldeia. Antes de retornar, porém, ela deu à luz uma menina. – Graças a Tupã não nasceu uma cobrinha! – disse ela, aninhando nas suas dobras o pequeno ser. Tarumã refez todo o trajeto com a menina na garupa até chegar de volta à sua aldeia. Entretanto, viu-se surpreendida pela péssima recepção dos seus. E não era para menos, já que Tarumã ainda ostentava sua figura de cobra gigante. Imediatamente, um grupo de valentes surgiu com arcos e flechas e começou a arremessar uma verdadeira chuva de setas para cima da pobre jovem-cobra-mãe. Tarumã não foi atingida, protegida que estava por suas escamas, mas sua filhinha não teve a mesma sorte e acabou varada por uma flechada certeira. Ao ver a filha morta, a cobra lançou para o ar um silvo de dor e tristeza tão aterrador que toda a aldeia saiu correndo em todas as direções. Imediatamente, um verdadeiro rio de lágrimas brotou das pupilas da cobra, preenchendo todo o sulco que abrira durante a viagem de volta. Dada sua proporção titânica, um rio imenso formou-se, o Oiapoque, e a cobra mergulhou nas suas águas caudalosas, desaparecendo. Desde então, como vingança, Tarumã passou a atacar povoados e embarcações ao longo do curso d’água.
Heber Gueiros[4] , amante do patrimônio cultural Paraense, nos conta que o mito da Boiúna parece vir de um tempo mais antigo que a chegada dos europeus. E, com a sangrenta imposição do cristianismo, sofreu um sincretismo, sendo simbólica a representação contida na imagem acima, onde a cobra se aloja no subsolo de algumas cidades, sua cabeça sob as igrejas, visto que ela é associada ao Mal na crença cristã.
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E se no subsolo de todas as cidades brasileiras, de baixo de suas ruas, avenidas, largos, praças, becos, habitasse uma serpente?
[1] Fonte: < https://twitter.com/hebergueiros > Acesso: 17 de jun. de 2022.
[2]Fonte:<https://www.ufmg.br/cienciaparatodos/wp-content/uploads/2012/08/leituraparatodos/e5_30-alendaamazonicadeboiuna.pdf > Acesso: 17 de jun. de 2022.
[3] Idem
[4] Fonte: < https://twitter.com/hebergueiros > Acesso: 17 de jun. de 2022.