Como um estatuto feito especificamente para um empreendimento especulativo que ocorre em uma única rua aborda a questão da escala e da escalabilidade? 

Em primeiro lugar, vale a pena delinear adequadamente o que este estatuto visa trazer à tona, ou seja, como projetar um modelo que acesse uma forma de normatividade que possa ser simultaneamente ubíqua e local, rígida e flexível, normativa e estética, prospectiva e existente.


Isto é possível através de uma estetização do direito e da legalização da estética, na medida em que a possibilidade de projetar um modelo normativo que poderia fluir transdutivamente entre projetos similares através da terra, constituindo e sendo constituído retroativamente por eles, sendo cada um a sua própria plataforma, participando ainda assim da mesma meta-plataforma, na qual se torna possível a comunicação e o compartilhamento de experiências e normas relativas à construção de luxos públicos. 

Desta forma, o estatuto funciona como um espaço aberto para normas, símbolos, efeitos, imagens, mitos, mantidos juntos por uma crença compartilhada. Afinal, o que faz com que qualquer estatuto tenha força de lei? Talvez a mesma coisa que transforma a especulação em realidade: uma crença compartilhada em um projeto comum e uma confiança tácita em um resultado positivo para os envolvidos (como retorno sobre investimento, por exemplo).

Isto permite um projeto de jurisdição reestruturado que extrai heranças da lei moderna de estilo soberano, mas que as reestruture de modo que, fractalmente, jorre infinitas multiplicidades. Argumentamos que esses modelos já existem de uma forma ou de outra, extraindo tanto da computação em escala planetária e das soberanias das plataformas, quanto de aparelhos normativos não modernos, como aqueles presentes nas Constituições Plurinacionais do Equador e da Bolívia. Estes modelos permitem e/ou insuflam a superposição de uma variedade de esquemas normativos que inspiram, por outro lado e em maior escala, aqueles necessários para um estatuto de co-vida em escala local e planetária.


Também é preciso levar em conta que, por sua própria natureza, as escalas trabalham para a transformação de um determinado conjunto normativo. Esta é a questão da escalabilidade. Portanto, o estatuto proposto é sempre um estatuto múltiplo, na medida em que funciona em escala local de rua, em escala média transdutora-transponível e em escala planetária de meta-plataforma. Portanto, ele é posicionado como um meio no qual a escalabilidade metamorfose das normas poderia ser administrada como um ativo produtivo e especulativo.


O ponto de partida de nosso estatuto é a Rua Chile, localizada no centro histórico da cidade de Salvador, Bahia, a capital mais negra do Brasil. A Rua Chile está no centro histórico da cidade e é uma rua em disputa, atualmente um foco de interesse da especulação imobiliária-financeira – em seus 350 metros de extensão, possui atualmente 2 hotéis de luxo e tem outro em construção. Os moradores de baixa renda da região estão sendo empurrados para fora por este “projeto de revitalização”.

Se o Chile, país conhecido por ser um laboratório experimental para a formulação de políticas neoliberais globais, acaba de adotar uma nova constituição por demanda popular e elegeu como seu presidente um antigo líder da resistência estudantil, deve agora ser visto como um local onde essas mesmas políticas se depararão com seu fim. Se o Chile acaba de aprovar um estatuto para seus cogumelos, pode uma rua homônima ser o foco de um estatuto que engloba suas estruturas e habitantes, humanos e não-humanos?

Nosso estatuto pretende ser um ponto de partida para uma contra-especulação nesta rua e em outras que se encontram em situações semelhantes. Ao contrário da especulação financeira, que seduz através da medição e do preço de uma possibilidade dentro de uma cerca de cenários já bem definidas, nossa ficção especulativa-real-estatística não se trata de extrapolar as tendências já existentes, mas da atividade de superá-las, criando-as e recriando-as.

A periferia de um país periférico do Sul global – o mundo majoritário – é uma posição especialmente adequada para propor novas normas e formas de resiliência, uma vez que o Sul sofre os piores efeitos de políticas globais fracassadas, da mutação climática e da desigualdade de poder. Em tempos incertos para a democracia, este instrumento pode ser um modelo útil tanto para a manutenção e nutrição democrática quanto para imaginar novas formas de organização baseadas no interesse público. 

Através deste estatuto, que será formulado neste contexto, em articulação com ativistas locais e líderes comunitários em torno da Rua Chile, pretendemos seduzir e encorajar outros, apresentando propostas desconcertantes para o futuro: um encantamento por uma possível realidade para tornar a especulação real.